Criança Curiosa

Tatiana ReNascimento
3 min readMar 21, 2022

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Foto de Marta Wave no Pexels

Uma criança curiosa. Uma criança perguntadeira das histórias da família.

Mas quem é Concórdia, ela era bem preta mesmo? Com quantos anos o biso morreu? Porque eu não conheci ele? Verdade que ele não ria e era bem magrinho?

Bisa, quando você nasceu não tinha geladeira? Mas a primeira vez que você viu o cometa Halley tinha a mesma idade que eu, 10 anos?

Vó, sua mãe não deixou você ser professora porque?

Mãe, se a vó não gostava de crianças porque teve seis filhos? A família dela é de Bagé mesmo?

Mal sabia eu que estava em busca de uma história tão importante para mim desde sempre que, ao nascerem meus filhos eu me tornaria a protagonista daquelas histórias e essas buscas se intensificariam no mais alto grau e de tal maneira que mudariam minha vida toda.

A busca por tudo aquilo que nunca foi dito costuraria todas as perguntas e respostas.

Até o dia 16 de fevereiro de 2011 quando meus filhos saíram de dentro de mim, me esgueirei pela vida nessas brechas de histórias mal contadas, caçando pistas de coerência e sentido que apesar de não carregarem a certeza (ela existe?), indicavam o caminho sobre o lugar que eu ocupava naquela fila imensa do pão.

Famílias inter-raciais no Brasil podem ser muito desafiadoras. É tanta coisa não dita, flutuando incertas, mas que de uma maneira ou de outra, dão as caras em alguma esquina da vida.

Pouca gente queria ser preto no Brasil que nasci. Ditadura, 1975.

“Parabéns mito da democracia racial, você destruiu um Brasil possível”, meu coração grita enquanto escrevo esse texto.

Minha bisavó negra de pele clara mandando eu sair do sol para eu não ficar mais preta, minha vó materna branca recebendo o namorado da filha com a pergunta “quem é esse negro no meio da minha sala”?, meu avô negro nos anos 30 estudando na melhor escola de Porto Alegre com bolsa, excelência teria que ser seu sobrenome, para que entrasse na faculdade de direito em pleno anos 40 mesmo debaixo de humilhações nesses anos escolares. Uma altivez o protegia — era filho de Xangô — e era muito perceptível. Meu avô “branco” descendente de indígenas e europeus do interior do Rio Grande do Sul, rechaçando a fortuna da família pois por causa dela, com a morte do pai, a mãe casou-se novamente com um homem interessado no dinheiro daquela mulher e mandou os filhos dela para um internato, mantendo os seus filhos em casa. Meu avô ligou o dinheiro à falta de amor e nunca mais voltou para sua cidade, a não ser para assinar o papel onde abria mão da herança.

Uma família preta que ascende social e economicamente e uma família considerada branca que abre mão de dinheiro e poder. Caminhos opostos e a pergunta:

“O que esse negro está fazendo na minha sala?”

Pois esse negro, dessa sala de um confortável apartamento do Bairro Bom Fim — famoso bairro boêmio e judaico de Porto Alegre — era meu pai. A racista, minha avó e a filha dela, minha mãe, uma das mulheres mais corajosas, uma das mulheres mais lindas, uma das mulheres mais presas dentro de um sistema machista e patriarcal e por isso enroscada até o último músculo, no qual não cabia, no qual não conseguiu movimentar-se e com o qual não soube jamais lidar.

É daí que eu venho.

E essa história não é apenas a minha, é a história de muitos brasileiros.

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Tatiana ReNascimento
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